A VERDADE DO TRAUMA

Quando leio os processos das crianças vitimas de INCESTO, não tem como não me reportar ao comportamento das vitimas do HOLOCAUSTO.
A tortura é a mesma. Ocorre que a criança no mundo todo não tem voz, diferente dos adultos. Entretanto, para ter credibilidade, K-Zetnik foi instigado pela PROMOTORIA da época a dar seu testemunho perante o TRIBUNAL sob pena de seu livro, que denunciava as atrocidades nos campos de concetração na Segunda Guerra Mundial, ser desacreditado.
Desafiado pela “Ameaça”, K-Zetnik então vai ao TRIBUNAL prestar seu depoimento.
Leia o que aconteceu com ele.
“Quando o promotor me convidou para vir e testemunhar no julgamento de Eichmann, eu implorei a ele que me liberasse desse testemunho. O promotor então me disse: Mr. Dinoor, este é um julgamento cujo protocolo precisa registrar seu testemunho provando que houve um lugar chamado Auschwitz e o que aconteceu lá. O simples som dessas palavras me embrulhou o estômago e eu disse: Senhor, descrever Auschwitz está além da minha capacidade! Ao me ouvir, sua equipe me olhou com desconfiança. O senhor, o homem que escreveu esses livros, espera que nós acreditemos que não pode explicar aos juízes o que era Auschwitz? Eu fiquei calado. Como eu poderia dizer a eles que eu estou consumido pela busca por uma palavra que irá expressar o olhar nos olhos daqueles que seguiam em direção ao crematório, quando passavam por mim me encarando dentro dos meus olhos? O promotor não ficou convencido e eu compareci ao julgamento de Eichmann. Então veio a primeira pergunta do juiz a respeito de Auschwitz e, antes que eu pudesse soltar algumas poucas frases miseráveis, caí no chão e fui hospitalizado, semi-paralisado e desfigurado em meu rosto. (FELMANN, 2014, p.144).”
O julgamento de Eichmann sofreu inúmeras críticas e muitas delas devido exatamente à assim chamada supervalorização do testemunho como meio de prova, porque como se sabe, o Direito e a historiografia tradicional sempre preferiram confiar nos documentos – enquanto a testemunha está sujeita à parcialidade, ao perjúrio, portanto à mentira, ao erro pela falha na rememoração; já o documento, conforme coloca Robert Jackson, juiz do Tribunal de Nuremberg, possibilitaria uma leitura objetiva – um veredito definitivo para a história. Essa é a visão tradicional:
Os documentos não poderiam ser acusados de parcialidade, esquecimento ou invenção, e dariam o alicerce não apenas para a orientação imediata do tribunal, mas para o veredito definitivo da história. (Apud FELMANN, 2014, p. 188, 189).
Essa cena foi de fato inúmeras vezes repetida, se tornando um símbolo do julgamento e também um símbolo da impossibilidade de se extrair uma “verdade jurídica” ou uma “verdade histórica” sobre a tragédia. O impactante desmaio dessa testemunha, que tinha como função “dar voz aos seis milhões de mortos”, ocorreu logo após a sua “qualificação jurídica”, no momento em que ele tinha que dar o seu “nome verdadeiro” e responder “objetivamente” às perguntas do promotor. Mas, o escritor, quem tanto discorrera sobre a experiência de Auschwitz, não suportou o testemunho objetivo dos fatos, das datas, nomes e descrições. Essa cena chocante é de extrema relevância assim para se pensar a questão central aqui colocada acerca da equação entre verdade e Direito. O que existe na verdade e no testemunho jurídico que é tão diferente da verdade e do testemunho literário? Por que a testemunha colapsa na cena jurídica quando tão bem consegue narrar sua verdade sobre a experiência de Auschwitz no campo literário? Como Direito e Literatura equacionam a questão da verdade após o choque da Segunda Guerra Mundial? Por que em situações traumática a literatura e as artes são capazes de elaborar uma verdade que escapa ao âmbito jurídico?
Sabemos que a filosofia do direito foi marcada, no pós Segunda Guerra Mundial, por duras críticas ao positivismo jurídico e ao pensamento kelseniano. Na busca pela superação do conhecido “desafio kelseniano” (FERRAZ JUNIOR, 1994, p.250) assistimos à consagração da chamada “virada-linguística” e a uma reabilitação da retórica clássica e das teorias da argumentação jurídica. [2] Esse movimento buscou atar um certo compromisso entre justiça e realidade social, dando ênfase para o caráter criativo do raciocínio jurídico em face da realidade. Passou-se a conceber o Direito como o campo da verdade como verossimilhança ou da racionalidade jurídica como aquela construída pelo melhor argumento (conforme ALVES, 2011 e SUDATTI, 2003). Mas, ao lado dessa tentativa de reestruturação do logos racional no campo jurídico, uma outra cena se delineou no campo artístico e literário. Na literatura e nas artes, o compromisso com a realidade foi muito mais radical e engajado, pois esses domínios permitiram uma abertura mais profunda para a reflexão sobre o passado traumático e uma via de elaboração e de denúncia da violência. Se o Direito foi invadido pela retórica, a literatura e as artes foram invadidas pelo real.
O presente é dominado e tem sentido a partir de um retorno do passado traumático. A verdade que dá sentido ao passado é a verdade do trauma.
Em relação ao testemunho jurídico, no plano dos grandes julgamentos internacionais do pós-guerra, explicando a abordagem evidencial de Nuremberg e sua opção pela prova documental, o promotor israelense, Gideon Hausner, escreveu:
Há uma vantagem óbvia na prova escrita; seja lá sobre o que precise convencer, está lá em preto e branco … Nem pode um documento ser derrubado em interrogatório. Fala com voz firme; não pode gritar, mas também não pode ser silenciado…
Este foi o percurso adotado nos julgamentos de Nuremberg … Foi … eficiente … Mas foi também uma das razões pelas quais os procedimentos falharam em alcançar os corações dos homens.
Com o objetivo de simplesmente garantir uma convicção, foi obviamente suficiente deixar que os arquivos falassem… Mas eu sabia que nós precisávamos de mais que uma convicção; nós precisávamos de um registro vivo desse gigantesco desastre humano e nacional…
Em quaisquer procedimentos criminais, a prova de culpa e a imposição de uma pena, apesar de suma importância, não são os objetos exclusivos. Qualquer julgamento também … conta uma história … Nossas percepções e nossos sentidos são configurados para experiências limitadas… Nós paramos de perceber criaturas vivas atrás dos crescentes números de vítimas; eles se transformam em estatísticas incompreensíveis.
Estava além dos poderes humanos apresentar a calamidade de um modo que fizesse justiça à tragédia de seis milhões. O único meio de concretizá-lo foi chamar testemunhas sobreviventes, tantas quanto a estrutura do julgamento permitisse, e pedir a cada uma delas que contasse um minúsculo fragmento do que tivesse visto e vivenciado… Juntas, as várias narrativas de pessoas diferentes seriam concretas o suficiente para serem apreendidas. Desse modo, desejei sobrepor a um fantasma uma dimensão da realidade. (grifos nossos, apud FELMAN, 2014, p. 191)
Uma autora canônica nos estudos do trauma, Cathy Caruth, explica que uma vez que a experiência do trauma se dirige ao outro e demanda a escuta de um outro, isso implica uma dimensão humana e uma dimensão ética em que o outro recebe prioridade sobre o eu. Essa dimensão ética está fortemente relacionada à questão da justiça. O trauma, portanto, “não serve simplesmente como gravação do passado, mas precisamente registra a força de uma experiência” que “não foi reclamada”, que “não foi completamente reconhecida” (CARUTH, 1995, p. 151). Portanto, essa verdade comunicada pela narrativa traumática em nada tem a ver com a descrição objetiva do real, simplesmente declarativa, ela vem em forma de rastro, de reminiscências, de fragmentos, é subjetiva, emotiva, catártica, profundamente autêntica e, não por último, crível. Não por acaso, Auschwitz foi chamado muitas vezes pelos sobreviventes de “planeta Auschwitz”, “o planeta das cinzas”, alguma coisa que foge à representação racional, lembrando que Freud, em seu ensaio Além do Princípio do Prazer, coloca em xeque exatamente a afirmação kantiana de que tempo e espaço são formas necessárias de nosso pensamento. Explica-nos, o pai da psicanálise, que os processos psíquicos inconscientes estão submetidos a uma outra lógica, atemporal (FREUD, 2010, p. 190) . O trauma é um passado que não passa, que retorna e que insiste em ser simbolizado. O falar e escutar o trauma, a necessidade do sobrevivente falar para o outro, não comunica um saber, mas exatamente o que nós não sabemos sobre o nosso próprio passado e sobre a história da nossa própria cultura.
No processo judicial, via de regra, a fotografia cumpre a importante função de revelar uma verdade factual, de testemunho como testis, daquilo que atesta a verdade. Por outro lado, para se pensar a verdade do trauma, Sontag destaca justamente a importância das fotografias que retratam catástrofes. Para a autora, essas fotos veiculam um forte conteúdo moral. Nossos olhos não conseguem desviar-se de uma cena de aniquilação e mantêm-se fixos até o desenlace final, segundo SONTAG (2003), por obrigação ou compromisso moral. Não é lícito virar o rosto e fingir que nada aconteceu. Há um engajamento inicial com a dor do outro que se desfaz pela percepção de nossa impotência diante dos fatos.
Assim, nas fotografias de catástrofes, SONTAG (2003) vê algo além das imagens impactantes e violentas. Há por trás da câmera um fotógrafo que, de certa forma, foi exposto ao mesmo terror e estado de tensão expressos pelas imagens.[5] Esteve prestes a ser atingido e a se transformar em mais uma vítima de guerra ou muitas vezes morre em serviço. Sontag reconhece a fotografia como um registro autêntico da experiência desses profissionais, sendo um veículo importante de comunicação, universalização e denúncia dos traumas de nossos tempos. A obra de um Robert Capa ou de um Sebastião Salgado, por exemplo podem ser lidas como um manifesto contra a guerra, contra as injustiças e contra a opressão.
A verdade encarada como discurso racional é totalmente parcial ou falsificada por não possibilitar uma simbolização ou reparação à altura do trauma. Contra essa falsificação da verdade, na arte e na literatura, a voz das vítimas semeia um laço com uma verdade humanizada, a verdade do corpo, do inaceitável, do não totalmente verbalizável, fragmentada, subjetivada e ao mesmo tempo autêntica. Nesse contexto, compreende-se as palavras de Adorno, “os verdadeiros artistas do presente são aqueles nos quais o terror mais radical treme”. (ADORNO, 1997: 507, Apud SELIGMANN-SILVA, 2014).
O testemunho da Shoah permitiu de maneira paradigmática a reflexão acerca de uma faceta da literatura e das artes que se volta para a necessidade de simbolizar traumas irrepresentáveis, em sociedades marcadas por conflitos intensos,
Trata-se de uma insistência, através do registro artístico e literário, em evidenciar o que a sociedade e o Direito querem negar, apagar, recalcar. As vozes das vítimas lutam na vida social para cunhar uma inscrição histórica da violência na tentativa de criação de uma memória política que resista ao esquecimento ou apagamento do mal, forçando também as portas da Lei para o reconhecimento jurídico dos direitos das vítimas.
Se a cena jurídica resiste e impede a simbolização do trauma, em momentos limite, como no caso de K-Zetnik, retraumatizando e silenciando a testemunha, a literatura presta seu testemunho à história. A literatura, sobretudo o que chamamos de literatura do testemunho, é e essa tentativa de dar expressão e voz ao irrepresentável. Explica Márcio Seligmann-Silva que não se trata de um gênero literário específico:
Para evitar confusões devemos deixar claro dois pontos centrais: (a) Ao invés de se falar em “literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos agora uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e que faz com que toda a história da literatura — após duzentos anos de auto-referência — seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor testemunhal” que marca toda obra literária (mas, repito, que aprendemos a detectar a partir da concentração deste teor na literatura e escritura do século XX). Este teor indica diversas modalidades de relação metonímica entre o “real” e a escritura. (b) Em segundo lugar, esse “real” não deve ser confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 38)
Assim, a valorização do testemunho permite uma revisão da história monumental, da história oficial, dos “documentos de cultura” a partir do contraponto das vozes não ouvidas e consideradas, o que lembra a conhecida passagem de Walter Benjamin:
Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie. E, assim como o próprio bem cultural não é isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que foi passado adiante. Por isso, o materialista histórico se desvia desse processo, na medida do possível. Ele considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” (BENJAMIN, 2012, p.244, 245 )
Se na base dos conflitos jurídicos é possível que quase sempre nos deparemos com um trauma, que se dá tanto em termos individuais (perda da propriedade, ofensas, divórcio, perda ou redução da capacidade de trabalho, perda de um ente querido, etc.), como nas consequências de um crime ou de um dano, que podem gerar um trauma, o Direito jamais oferece condições de acessar a verdade traumática desse conflito. Sua atuação, no campo judicial, acaba se limitando aos termos de uma reparação ou equacionamento de direitos e deveres que é sempre insuficiente para lidar com o desconcertante elemento traumático, muitasSempru vezes inclusive colaborando para sua reiteração, silenciamento ou aprofundamento. Por isso, as chamadas Justiças de Transição, se estruturam como respostas mais efetivas em termos de enfrentamento do passado traumático deixados pelas guerras e regimes autoritários, focando sua atenção nas vítimas e em suas narrativas, exatamente para suprir essa característica institucional do Direito em seu registro tradicional, que recalca e oculta a verdade do trauma, denegando uma justiça mais concreta e ampla às vítimas e familiares. Daí as estratégias das Justiças de Transição, que procuram instituir uma via de acesso para a verdade do trauma pela voz da testemunha, almejando maior integração à cultura do testemunho e à concepção da história como trauma. Dessa forma, cabe reconhecer que os estudos sobre o trauma não podem mais ser ignorados pelo pensamento jurídico crítico e é necessários trilhar abordagens integradoras dos estudos do Direito e do Trauma. Essas abordagens interdisciplinares encontram nas artes e na literatura um terreno já fertilizado pela cultura do testemunho.

Verdade e Trauma: o testemunho das vítimas, a história em julgamento – Ariani Sudatti