A RE(PRODUÇÃO) DO DISPOSITIVO [SINDROME DA] ALIENAÇÃO PARENTAL NO BRASIL

Introdução

Mais de uma década desde a divulgação iniciada em meados dos anos dois mil por associações de pais separados no Brasil sobre a Síndrome da Alienação Parental (SAP), descrita em 1985 por Richard Gardner, é notória a rapidez com que o assunto se difundiu no campo social e, particularmente, no âmbito jurídico, entre as(os) operadoras(es) do Direito, psicólogas(os) e assistentes sociais. A importação acrítica e a divulgação das proposições da(o) psiquiatra norte-americano como verdades únicas e incontestes sobre a SAP, aliadas a uma intensa produção discursiva sobre esse suposto distúrbio infantil no cenário nacional, contribuiu para que, em pouco tempo, fosse criada
a Lei n. 12.318/2010 sobre a dita alienação parental (AP), gerando, assim, um aparente consenso sobre o assunto. Enquanto isso, o conhecimento produzido até então, tanto por pesquisas nacionais quanto internacionais, sobre questões relativas ao rompimento conjugal e
à disputa de guarda de filhos foi notadamente desprezado.
Por meio de pesquisas embasadas em uma perspectiva crítica e genealógica sobre as proposições de Gardner, é possível notar que estas foram constituídas a partir de práticas discursivas que atualizam o histórico consórcio entre Justiça e Psiquiatria. Aliado a isso, no curso do tempo, a difusão das ideias daquele psiquiatra no Brasil vem contribuindo para a (re)produção do dispositivo [síndrome da] alienação parental, o qual, dentre outros aspectos, mescla as noções de conduta, transtorno e problema relacional. Em torno de tal dispositivo expande-se uma rede heterogênea de elementos (livros, cartilhas, campanhas, sites, matérias em jornais, eventos, pesquisas, testes, escalas de avaliação, projetos de leis, leis etc.) que o tornam altamente eficaz no sentido de esquadrinhar, classificar, patologizar e penalizar as relações familiares no contexto do rompimento conjugal.
Tudo isso, cabe notar, sob o argumento da proteção de crianças e dos direitos de genitores/as identificados/as como vítimas de AP (SOUSA, 2010; 2014; 2017). Atualmente, desponta no cenário nacional mais uma extensão desse dispositivo, a organização do movimento de mães que foram acusadas de AP pelos ex-companheiros, após denunciá-los por abuso sexual contra os filhos. Nessas situações, mães e filhos vêm sendo percebidos como vítimas dos homens-pais apontados como abusadores sexuais.
Diante de questionamentos sobre o modo como a Lei n.º 12.318/2010 vem sendo aplicada em situações de intenso litígio conjugal, instituições que atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, assim como órgãos de categoria, vêm sendo instados a se pronunciar sobre o assunto, bem como a orientar os profissionais que lidam com o tema. No caso da Psicologia, destacam-se especialmente os profissionais que atuam no âmbito do Judiciário e da clínica privada, aos quais comumente têm sido endereçadas demandas de avaliação de AP e revelação de abuso sexual infantil.
No presente ensaio, tem-se como objetivo realizar um breve histórico da constituição do dispositivo [síndrome da] alienação parental no Brasil, contribuindo, assim, com reflexões críticas que possam subsidiar o debate necessário sobre um de seus prolongamentos, a Lei n.º 12.318/2010, e sua relação com o tema abuso sexual infantil no contexto do rompimento conjugal.

A SAP e a patologização do litígio conjugal

Em meados da década de 1980, nos Estados Unidos, o psiquiatra Richard Gardner (2001) definiu a Síndrome da Alienação Parental (SAP), a partir de avaliações que fazia em situações de litígio conjugal e disputa de guarda de filhos. Segundo ele, tratava-se de um distúrbio
infantil que se manifestava por meio de uma campanha de difamação que a criança realizava contra um dos genitores, sem que houvesse
justificativa para tanto. A SAP, de acordo com o psiquiatra, era resultado da programação ou “lavagem cerebral”, promovida por um dos
genitores, para que a criança rejeitasse e odiasse o outro responsável, somada à colaboração da própria criança. Assim, o diagnóstico
da SAP seria feito a partir dos sintomas exibidos por esta última. O psiquiatra asseverava ainda que vítimas da SAP na infância manifestariam ao longo da vida dificuldades nas relações sociais e até mesmo distúrbios psiquiátricos.
Quanto aos genitores, Gardner (2001) classificava um como “alienador” e o outro como “alienado”, empregando ainda este termo para se referir a um ou mais filhos que apresentassem os sintomas da síndrome. No que tange ao primeiro, o psiquiatra o descrevia como alguém que não aceitava o fim do casamento, que seria impulsionado por raiva, ciúmes e desejo de vingança em relação ao ex-cônjuge, o que o levaria a alienar os filhos. A princípio, Gardner assinalava que, na maioria dos casos, as mães guardiãs eram as alienadoras. Embora tenha mudado seu ponto de vista posteriormente, vindo a afirmar que tanto mães quanto pais eram alienadores, em grande parte de seus escritos, as genitoras são assim classificadas (SOUSA, 2010). Quanto ao nomeado genitor alienado, segundo o psiquiatra, seria alguém que não teria dado motivos para que os filhos o rejeitassem como, por exemplo, agressões e abusos contra estes.
Para o tratamento da SAP, Gardner (1998) recomendava uma série de medidas judiciais que deveriam ser impostas ao alienador como, por exemplo, perda da guarda, suspensão de contato com os filhos e prisão. O psiquiatra defendia ainda a determinação de tratamento psicoterápico aos demais membros da família. Caso eles não se comprometessem com o tratamento, o terapeuta, mediante autorização do juiz, deveria ameaçá-los com medidas judiciais. Por conta disso, o tratamento indicado por Gardner ficou também conhecido como “terapia da ameaça” (ESCUDERO; AGUILAR; CRUZ, 2008, p. 203).
Importa mencionar que, como a SAP não possuía reconhecimento oficial, um dos grandes objetivos do psiquiatra norte-americano era a inclusão desse suposto distúrbio no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), uma publicação da Associação Americana de Psiquiatria (APA). Para isso, ele se dedicou intensamente à divulgação da SAP, assim como a defendê-la de críticas e polêmicas, ainda que o fizesse basicamente por meio de argumentos supostamente lógicos (SOUSA, 2010). Em que pesem os esforços de Gardner e de seus seguidores, a SAP não foi incluída no DSM-5, publicado em 2013.
Gardner, em seu modelo teórico, desconsiderou os achados de pesquisas realizadas anteriormente sobre divórcio e guarda de filhos e teve como foco unicamente avaliações psicológicas individuais. Desse modo, ele desprezou a complexidade das relações familiares, privilegiando a descrição de sintomas para a classificação de doenças e, por conseguinte, a classificação dos indivíduos. Ele estabeleceu ainda uma abordagem determinista e limitada acerca dos comportamentos e das relações humanas, uma vez que ignorou a singularidade e a capacidade das pessoas de desenvolver suportes em meio a situações de conflito e sofrimento (SOUSA, 2010).
Além de priorizar aspectos individuais psicológicos em suas proposições, como apontado anteriormente, o psiquiatra desconsiderou a
representação construída ao longo do tempo sobre as mães como naturalmente devotadas aos cuidados infantis, e que ainda hoje permanece sendo atualizada em discursos correntes no campo social (BADINTER, 1985). Assim, o fato de algumas mães guardiãs recorrerem ao Judiciário, na tentativa de dificultar ou impedir a convivência entre pais e filhos (OLIVEIRA, 2003), pode ser apreendido como a forma que encontraram de manter preservado um lugar que entenderam como seu, o de cuidado dos filhos.
Comumente, questionamentos e objeções à teoria SAP causam surpresa e até mesmo incredulidade, pois não são raras situações de intenso litígio conjugal em que um ou mais filhos possuem uma forte ligação com um genitor, ao mesmo tempo em que rejeitam de forma exacerbada o outro responsável. Em pesquisas longitudinais desenvolvidas nos Estados Unidos sobre divórcio, Wallerstein e Kelly (1998) e Johnston, Roseby e Kuehnle (2009) citam, por exemplo, a violência contra os filhos e outras dinâmicas relacionais que podem estar presentes nas famílias que vivenciam o divórcio. Como observam estas últimas estudiosas, a teoria unidimensional de Gardner enfoca basicamente o chamado genitor alienador como responsável pela alienação da criança. Contrárias a tal perspectiva, as pesquisadoras compreendem que nos casos em que os filhos revelam intensa animosidade e rejeição a um dos pais, deve-se considerar preocupante o sistema familiar, o qual, como ressaltam, tem suas problemáticas exacerbadas, em grande parte, pelo modelo adversarial que predomina nas cortes de Justiça daquele país.
Ademais, Gardner construiu um modelo teórico acerca de um problema há muito conhecido, especialmente de profissionais que atuam nos juízos de família: as intensas alianças que por vezes se estabelecem entre um dos genitores e os filhos, os quais repudiam ativamente o outro responsável. Seguindo o pensamento de Foucault (2000) de que as práticas sociais produzem não só saberes, mas também novos conceitos e objetos, reflete-se que Gardner, ao avaliar famílias em litígio, não descobriu uma síndrome, mas sim a criou a partir de certas práticas discursivas. Desse modo, ele propôs um saber sobre os indivíduos, a partir do qual diversos comportamentos, por vezes expressos no cenário do divórcio, são enquadrados como sintomas de um distúrbio.
Embora formalmente Gardner não tenha alcançado um de seus maiores objetivos, que era a inclusão da SAP no DSM, pode-se dizer que a rápida difusão de sua teoria, de forma acrítica, tem efetivamente contribuído para uma visão patologizante acerca dos conflitos parentais em situação de disputa de guarda, ao priorizar a busca por distúrbios psicológicos no exame da matéria.
Cabe mencionar que na nova versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID11), publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o termo alienação parental foi indexado à condição QE52 Problema Associado a Interações Interpessoais na Infância. Ou seja, ele foi empregado para nomear uma relação disfuncional entre o cuidador e a criança que pode
causar prejuízos à saúde dos envolvidos, e não um distúrbio mental (Organização Pan-Americana da Saúde, 2018). Sem dúvida, em cenários de intenso conflito entre genitores, não se pode ignorar o sofrimento vivido por todos os envolvidos. Igualmente, compreende-se que não
se devem desprezar os jogos de força e os interesses na apropriação de certos termos ou conceitos, sob pena de se responsabilizar unicamente os indivíduos por problemáticas que são efetivamente sociais.

Os homens-pais e a busca por direitos e/ou punição

No Brasil, o tema SAP foi divulgado, a partir do ano 2006, por associações de pais separados, as quais em grande parte eram compostas por homens-pais não guardiões. Anteriormente, essas associações haviam se dedicado à promoção da guarda compartilhada, que alcançou reconhecimento legal, em 2008, com a promulgação da Lei n.º 11.698. Ainda que carecesse de ampla divulgação e aprofundamento do debate social sobre essa modalidade de guarda, aquelas associações logo se empenharam em promover em todo o país o tema SAP, uma vez que entenderam se tratar de um novo artifício empregado por mães guardiãs para afastar ou excluir os pais da vida dos filhos.
A princípio, tais associações buscaram chamar a atenção, especialmente, dos profissionais que atuavam nos juízos de família para a situação de pais e filhos tidos como alienados. Progressivamente, o assunto ganhou destaque nos meios de comunicação, sendo abordado em documentário, programas televisivos, publicações, eventos etc. (SOUSA; BRITO, 2011).
Diante da comoção social promovida a partir da exibição do sofrimento de pais e filhos vitimados por alienadoras malvadas e vingativas —
como por vezes eram representadas as mães guardiãs —, foi elaborado o Projeto de Lei Federal n.º 4.053/2008 sobre AP com o objetivo de “inibir a alienação parental e os atos que dificultem o efetivo convívio entre a criança e ambos os genitores” (p. 3). Cabe assinalar que o fato de, naquele momento no Brasil, não haver registro de estudos sistematizados sobre a SAP nas áreas da psiquiatria ou da Psicologia, por exemplo, parece não ter despertado a atenção do legislador (SOUSA, 2010). Nota-se ainda que foram desprezados fatores sociais, culturais, legislativos, que ao longo do tempo têm contribuído para a assimetria entre os papéis materno e paterno no que se refere aos cuidados infantis, como já foi mencionado.
Igualmente foram negligenciados os achados de pesquisas realizadas no país sobre divórcio e disputa de guarda de filhos que apontam, dentre outros aspectos, a complexidade que envolve as relações parentais nesse contexto. Por outro lado, no texto de justificativa do PL são reproduzidos trechos de material traduzido de páginas eletrônicas na Internet sobre a SAP e textos publicados por associações de pais, citadas anteriormente.
Desse modo, no Brasil, diferentemente de outros países, as críticas e os questionamentos existentes sobre aquela designada síndrome não eram mencionados, passando-se a ideia de que se tratava de uma verdade inconteste (SOUSA; BRITO, 2011).
O referido PL, notadamente, tinha como objetivo a punição do genitor apontado como alienador. Durante sua tramitação, em 2009, na Câmara Federal dos Deputados, o PL teve substitutivo da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara que estipulava a pena de detenção de seis meses a dois anos ao genitor que empreendesse a dita AP. Naquele mesmo ano, foi promovida pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara uma audiência sobre o assunto, na qual esteve presente uma jovem que era identificada como vítima de AP praticada pela mãe (CÂMARA NOTÍCIAS, 2009). Após aquela audiência, foi proposto pela relatora, a deputada federal Maria do Rosário, um substitutivo que retirava a previsão de pena de detenção contra o alienador, mas mantinha outras sanções que poderiam ser imputadas pelo julgador (CÂMARA FEDERAL, 2011). Apesar de diversas contrariedades sobre a SAP, da falta de amplo debate social e de pronunciamento de atores ligados aos direitos de crianças e adolescentes sobre o assunto, ao que parece a fala de alguém que se identificava como “vítima de alienação parental” foi fator decisivo no trato da matéria. A lei sobre AP, desse modo, pode ser um bom exemplo de como o destaque conferido à figura da vítima tem contribuído atualmente para a criação de novas leis punitivas, ao mesmo tempo em que são negligenciadas outras problemáticas ligadas à sua condição e o contexto social em que estão inseridas (SOUSA, 2014).

A judicialização hiperbólica

Em agosto de 2010, foi promulgada a Lei n. 12.318 que define o ato de AP como interferência na formação psicológica de crianças e
adolescentes, por parte do adulto responsável pela guarda, para que repudiem o genitor não residente, prejudicando assim a manutenção
dos vínculos com este. Embora não tenha tornado crime a AP, a lei apresenta uma série de medidas que podem ser aplicadas contra o
dito alienador, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal de acordo com a gravidade do caso. Cabe mencionar que àquela época
houve veto presidencial ao Artigo 10 da lei que previa sanção penal ao genitor que apresentasse falsas denúncias.
A lei citada acima dispõe ainda sobre a atuação de profissionais que compõem as equipes que assessoram os juízos. No que tange às(aos)
psicólogas(os), causa preocupação o fato de a(o) legisladora(or), ao mesmo tempo em que prioriza a avaliação individual na busca por patologias em situações de disputa de guarda de filhos, desconsidera a normativa que rege o exercício da profissão no país, assim como os debates sobre formas de intervenção que não favoreçam o acirramento do conflito entre os genitores (SOUSA; BRITO, 2011; SAMPAIO, 2017).
Nota-se que desde a aprovação da Lei n.º 12.318/2010, a [síndrome da] alienação parental seguiu sendo incorporada pela normativa legal no país. Naquele mesmo ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2010, ), emitiu a Recomendação n.º 33, segundo a qual, para a identificação de “[…] casos de síndrome da alienação parental e outras questões de complexa apuração nos processos inerentes à dinâmica familiar, especialmente no âmbito forense”, deveriam ser submetidos à técnica de inquirição nomeada depoimento especial.
Além disso, o assunto serviu de justificativa para nova proposta de lei em âmbito federal (PL n. 7.569/2014), com o objetivo de reparar
os danos e traumas vividos pelas vítimas da AP — ou seja, filhos e pais supostamente alienados. Em sequência, provavelmente inspirado por
aquela recomendação do CNJ, o Novo Código de Processo Civil, Lei n.º 13.105 de 16 de março de 2015, prevê, no Artigo 699, a participação de especialistas para a tomada de depoimento em processo que “envolver discussão sobre fato relacionado a abuso ou a alienação parental”. Posteriormente, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) emitiu a Recomendação n.º 32 de 5 abril de 2016, na qual, considerando que aquela suposta síndrome frequentemente está presente em ações litigiosas em varas de família, indica a capacitação dos membros dos Ministérios Públicos Estaduais sobre o assunto e esforços no “combate à alienação parental” (2016, p. 3).
Também em 2016, deu entrada na Câmara Federal de Deputados o PL n.º 4.488/2016 com o objetivo de alterar a lei da AP, tornando crime essa considerada conduta. O texto de justificativa do PL dá a entender que, desse modo, se contribuiria para coibir as falsas alegações de abuso sexual infantil no contexto do litígio conjugal. Vale lembrar que, conforme Artigo 2.º daquela lei, as falsas alegações são consideradas uma forma de AP.
Nessa breve cronologia sobre a difusão da [síndrome da] alienação parental pelas instâncias legislativa e jurídica, no Brasil, é indispensável citar a Lei n.º 13.431, aprovada em 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e dá outras providências. No Artigo 4.º da nova lei, que entrou em vigor um ano após sua aprovação, o ato de alienação parental, definido nos termos da Lei n.º 12.318/2010, é considerado uma forma de violência psicológica contra crianças e adolescentes.
Com isso, nas situações que aportam às varas de família, com suspeita de [síndrome da] alienação parental, menores de idade poderão ser ouvidos em juízo na forma do denominado depoimento especial. Cabe mencionar que, essa técnica de inquirição tem sido objeto de intensos
debates entre profissionais da Psicologia, do Serviço Social e do Direito (BRITO; PARENTE, 2012). Em recente Nota Técnica, n.º 1/2018, do
Conselho Federal de Psicologia, sobre a Lei n.º 13.431/2017, os profissionais são alertados para o fato de que, em casos de disputa de guarda de filhos, o depoimento especial seria empregado como um recurso rápido e superficial em detrimento dos estudos psicossociais.
Acrescenta-se ainda que, para que os considerados casos de [síndrome da] alienação parental cheguem ao Judiciário, é preciso que as
pessoas assim percebam suas vivências pessoais. Ou seja, a partir da assimilação de enunciados sobre o assunto, elas dão um novo sentido
às suas experiências e sofrimentos, passando então a se identificar como vítimas de um genitor alienador (SOUSA, 2014). Para tanto,
pode-se citar a criação de leis e propostas de leis, como as que foram referidas anteriormente, a confecção e a distribuição de cartilhas informativas sobre o assunto, dentre outras ações. Desse modo, reflete-se que, nos últimos tempos, nossas instituições ao mesmo tempo em
que chamam a atenção para o assunto, têm contribuído para a produção de subjetividades reduzidas à condição de alienado/vítima e alienador/algoz — e, por conseguinte, para mais demandas aos Tribunais de Justiça de todo o país (SOUSA, 2014). A partir do pensamento de
(RIFIOTIS, 2014), pode-se afirmar que, sob o argumento de se identificar os chamados alienadores ou coibir a [síndrome da] alienação
parental, tem se promovido um amplo processo de judicialização da vida, no qual problemáticas que envolvem o divórcio e a guarda de
filhos são endereçadas à Justiça em busca de rápida solução.

O movimento de reação das mães acusadas de AP

Apesar da produção de um aparente consenso em torno da [síndrome da] alienação parental no Brasil, em 2017, veio a público uma
nova polêmica envolvendo o assunto: mães que denunciaram os ex–parceiros por abuso sexual contra os filhos, foram declaradas como
alienadoras por ausência de provas (OLIVEIRA, 2017). Com isso, elas perderam a guarda dos filhos, que foi concedida aos pais com
base na premissa de que “[…] as denúncias não passavam de atos de difamação engendrados por mães vingativas” (CHIAVERINI, 2017,
). Há relatos de mães que, além de perder a guarda dos filhos, teriam sido impedidas de vê-los durante meses. Em texto amplamente
compartilhado nas redes sociais, Cruz (2017) argumenta que alusões à AP estão sendo usadas para encobrir situações de violência intrafamiliar. Como explica a autora, isso estaria servindo de […] “álibi para violadores de mulheres e crianças, deixando vítimas de violações em total desproteção” […] (CRUZ, 2017, ). Outro argumento em defesa das genitoras é o de que, diante da ameaça feita pelos ex-parceiros de acusá-las de AP na Justiça, elas são intimidadas e silenciadas, permanecendo, assim, impotentes diante da suspeita de abuso de seus filhos (NEVES, 2017).
A veiculação do assunto nos meios de comunicação de massa, aliada à criação e organização de grupos nas redes sociais, impulsionou no
país o movimento de reação de mães e profissionais contra as acusações de AP. Assim como ocorrera com o movimento de homens-pais,
abordado anteriormente, não tardaram respostas em âmbito legislativo. Em 2018, em um curto espaço de tempo, entre os meses de maio
e agosto, foram apresentados à Câmara Federal de Deputados quatro novas iniciativas de lei (PL n.º 10.182/18, PL n.º 10.402/18, PL n.º
10.639/18 e PL n.º 10.712) que trazem, dentre outros objetivos, a revisão de artigos, e até mesmo a revogação da lei da AP.
Também nessa vertente, cabe citar Nota Pública, emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA, 2018), sobre a Lei n.º 12.318/10. Segundo essa Nota, “já existem previsões legais protetivas e suficientes no que tange aos direitos de
crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária”. Além disso, é ressaltado que a lei da AP “não é oportuna e sequer adequada, pois há dispositivos que ensejam violações graves aos direitos de crianças e adolescentes”. Este é o caso, por exemplo, do inciso VI do Artigo 2.º da Lei n. 12.318/10, o qual relaciona como forma exemplificativa da AP “apresentar a falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente” (BRASIL, 2010). Contudo, como é salientado na Nota, […] “diferentes previsões no Estatuto da Criança e do Adolescente apontam para a obrigatoriedade de comunicar a suspeita de violência, bem como para a responsabilidade compartilhada por proteger direitos e prevenir violações” […]. Diante disso, a referida Nota recomenda a revogação de dispositivos da lei ou seu inteiro teor.
Na atualidade, portanto, despontam questionamentos sobre a Lei n. 12.318/10 e, sobretudo, a referência que faz às falsas alegações,
como citado acima. Cabe lembrar, contudo, que a associação (acrítica e irrefletida) entre as falsas alegações de abuso sexual infantil e a SAP vem sendo feita no país desde a divulgação inicial sobre as ideias Gardner. Como já demonstrado em estudo anterior, enquanto no Brasil alguns asseveravam naquele momento (e ainda hoje) tal associação, em outros países vinham se promovendo intensos debates e posições polarizadas por parte de genitores, profissionais e estudiosos sobre o assunto (SOUSA; AMENDOLA, 2012).
Certamente, no contexto do rompimento conjugal existem situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes, como também
de falsas alegações. Especificamente, quanto a estas, não é prudente interpretar de antemão as denúncias feitas por mães guardiãs como
maledicência ou intenção de prejudicar o ex-parceiro. Algumas vezes, essas mães podem ser levadas, por diferentes fatores, a perceber os
sintomas e comportamentos exibidos pela criança como resultado de um possível abuso sexual (SOUSA; AMENDOLA, 2012). Por isso, é fundamental um exame acurado por parte dos profissionais no trato da questão. Contudo, não é demais afirmar que análises cuidadosas sobre a complexidade das relações e dos conflitos familiares, assim como outras possibilidades de intervenção profissional, parecem ceder cada vez mais lugar ao discurso jurídico-penal. Ou seja, em nome da proteção de crianças e adolescentes, bem como da celeridade processual, busca-se exclusivamente identificar e punir um dos genitores — seja como ofensor sexual seja como alienador. Cabe lembrar que, desse modo, também podem se aprofundar discórdias, causando mais sofrimento aos filhos, haja vista que nessas situações eles serão afastados de um dos pais.

Considerações Finais

O modo como até hoje se difunde enunciados sobre o dispositivo [síndrome da] alienação parental no contexto brasileiro, aliado a certa produção de subjetividades sobre o assunto, revela sobremaneira a sua positividade. Dito de outro modo, a partir de uma teoria de
escasso valor científico, da comoção social gerada, de demandas por punição, de uma visão maniqueísta sobre os indivíduos, dentre outros
aspectos, mesclados, por vezes, com argumentos de proteção a crianças e adolescentes, se produziu o que talvez seja um dos mais eficazes
dispositivos de controle social da atualidade.
Considerando alguns dos desdobramentos do referido dispositivo, como a produção incessante de novos casos — ou melhor, de acusações e reações —, de mais demandas ao Judiciário e aos considerados especialistas, entende-se que limitar o debate atual sobre a Lei n.º 12.318/2010 à exposição de argumentos contra ou a favor a sua revogação/modificação, pode contribuir para entrincheirar posições,
assim como reduzir a complexidade das dinâmicas familiares a uma questão exclusivamente de ordem pessoal. Entende-se que, em realidade, é fundamental e urgente um intenso debate sobre a judicialização e patologização das relações humanas e suas interseções com as questões de gênero no contexto atual. E, especialmente, sobre o modo como a Psicologia — não só a designada como jurídica, mas também a clínica — vem respondendo às demandas que lhe são endereçadas sobre [síndrome da] alienação parental.

Analicia Martins de Sousa – “Debatendo sobre alienação parental: diferentes perspectivas” – Pg.80)
(https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/11/Livro-Debatendo-sobre-Alienacao-Parental-Diferentes-Perspectivas.pdf)