A “materialidade” de crimes informáticos exige perícia rigorosa?

DECISAO-STJ-CRIMES-INFORMATICOS

A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Agravo em Recurso Especial nº 2870036 – PR, que absolveu o recorrente do crime de divulgação de registros visuais de conteúdo pornográfico envolvendo adolescente (Art. 241-A do ECA) por falta de perícia técnica e quebra da cadeia de custódia, pode ser analisada sob diferentes perspectivas para determinar sua “justiça”, especialmente à luz do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

**Principais Pontos da Decisão do STJ:**

* **Absolvição por Ausência de Prova da Materialidade:** O STJ absolveu o recorrente porque a condenação em segunda instância se baseou na palavra da vítima e em um *print* extrajudicial, sem a realização de perícia nos dispositivos eletrônicos apreendidos (celular, *notebook* e *pendrives*).
* **Necessidade de Perícia:** O Tribunal enfatizou que o Art. 158 do Código de Processo Penal (CPP) exige exame de corpo de delito quando a infração deixa vestígios. No caso de crimes informáticos, a materialidade do ato de “divulgar” exige **demonstração técnico-pericial do nexo entre a conta, o dispositivo e o ato de compartilhamento**. A omissão da perícia não poderia ser suprida por testemunhos ou presunções quando a prova técnica era viável.
* **Ausência de Lastro Técnico e Cadeia de Custódia:** A prova oral não demonstrou objetivamente o compartilhamento pelo réu. Os investigadores, inclusive, não encontraram mensagens que evidenciassem o compartilhamento. O STJ também apontou a violação do Art. 157, §1º, do CPP, destacando que a **ausência de cadeia de custódia idônea e de validação técnica neutraliza a confiabilidade de registros informais**, tornando as provas inadmissíveis.
* ***In Dubio Pro Reo*:** A decisão aplicou o princípio do *in dubio pro reo*, argumentando que a invocação do “especial relevo” da palavra da vítima não dispensa a exigência legal de lastro técnico mínimo quando a perícia era possível e foi omitida por “desídia estatal” (negligência do Estado).

**Análise sob a Perspectiva do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” do CNJ:**

O Protocolo do CNJ busca orientar a magistratura a julgar com atenção às desigualdades de gênero, buscando a efetivação da igualdade e das políticas de equidade.

1. **Valoração da Palavra da Vítima:** O Protocolo do CNJ ressalta a **”alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero”**, especialmente em crimes sexuais que ocorrem em ambientes privados, onde a produção de outras provas é difícil. O fato de a vítima ser hipossuficiente pela idade em crimes sexuais contra crianças e adolescentes é um desafio à rede de enfrentamento à violência, e a escuta protetiva é crucial para evitar a revitimização. O Protocolo também reconhece que a demora na denúncia ou a falta de linearidade nos relatos de eventos traumáticos não devem ser interpretadas como aceitação ou como indício de falsidade na acusação. A decisão do STJ, embora reconheça o “especial relevo” da palavra da vítima, considerou-a insuficiente sem a prova técnica.

2. **Necessidade de Prova Técnica e Responsabilidade Estatal:** O Protocolo, ao abordar a instrução processual, afirma que “provas periciais devem ser produzidas com atenção a desigualdades estruturais” e que peritos e outros atores (como policiais) devem ser capacitados. A decisão do STJ, ao criticar a “desídia estatal” na não realização da perícia em dispositivos apreendidos, aponta para uma falha na produção probatória por parte do Estado. De uma perspectiva de gênero, a justiça não pode ser alcançada se as instituições falham em coletar e preservar adequadamente as provas digitais, que são essenciais em crimes informáticos.

3. **Combate à Violência Institucional e Garantia de um Processo Justo:** O Protocolo define violência institucional como aquelas praticadas por instituições, incluindo o Poder Judiciário, que podem expor ou revitimizar a vítima. A exigência de um “escrutínio probatório idôneo e livre de vieses, atento ao caso concreto” implica que as provas devem ser coletadas e analisadas de forma rigorosa e tecnicamente válida. A ênfase do STJ na cadeia de custódia da prova digital (Art. 157, §1º do CPP) é uma medida que busca garantir a integridade da prova e, indiretamente, a justiça do processo, evitando condenações baseadas em provas potencialmente manipuladas ou incompletas.

4. **Igualdade Substantiva vs. Formal:** A decisão do STJ reflete uma aplicação formal e garantista do Direito Processual Penal, onde a ausência de prova material técnica, quando possível e requerida, impede a condenação. Embora o Protocolo do CNJ preconize a igualdade substantiva e um olhar atento às desigualdades que afetam a mulher, ele também não advoga por condenações sem um lastro probatório mínimo e válido, especialmente quando falhas processuais por parte do Estado comprometem a materialidade do crime.

**Conclusão sobre a “Justiça” da Decisão:**

A decisão do STJ, embora possa ser vista como desafiadora para a proteção da vítima de violência de gênero em uma leitura mais ampla, é **justa sob o prisma do devido processo legal e dos princípios garantistas do Direito Penal brasileiro**. Ao exigir a perícia técnica e o respeito à cadeia de custódia, o STJ protege o réu de uma condenação baseada em indícios insuficientes, mesmo quando a palavra da vítima é crucial.

A “desídia estatal” em não realizar a perícia nos equipamentos apreendidos, que poderiam corroborar ou refutar a narrativa de divulgação, é o fator determinante para a absolvição. Nesse sentido, a decisão atua como um mecanismo de controle sobre a atuação do Estado-acusação, garantindo que o ônus da prova seja devidamente cumprido e que as garantias fundamentais do réu sejam respeitadas.

Portanto, a justiça da decisão do STJ reside na **proteção das garantias processuais do acusado**, destacando que, mesmo em crimes graves e sensíveis como a violência de gênero, o Estado deve empregar todos os meios disponíveis para produzir provas robustas, válidas e tecnicamente idôneas. A ausência dessas provas, por falha na investigação, não pode ser suprida por presunções, mesmo que a narrativa da vítima seja consistente e de “especial relevo”. A decisão, assim, impõe um padrão de rigor probatório que, embora possa gerar frustração para as vítimas, é essencial para a legitimidade do sistema de justiça.